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segunda-feira - 15 de dezembro de 2025

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15/12/2025

Cotas em SC: mais do que um retrocesso histórico, um recuo civilizatório

A polêmica aprovação do projeto de lei que veda cotas raciais em instituições públicas de ensino superior não representa apenas um retrocesso histórico. Trata-se de um recuo civilizatório, no sentido mais amplo da palavra.

Na quarta-feira, (10) Assembleia Legislativa de Santa Catarina aprovou o PL 753/2025, de autoria do deputado (foto) Alex Brasil (PL), que proíbe cotas raciais e outras ações afirmativas em instituições de ensino superior da rede pública estadual e também nas universidades privadas que recebem recursos públicos do Estado.

A votação foi simbólica, sem registro individual no painel eletrônico. Ainda assim, a Mesa Diretora informou nominalmente os sete deputados que se posicionaram contra a proposta e registrou dois parlamentares ausentes, em um universo de 40 deputados. Na prática, o projeto foi aprovado com ao menos 31 votos favoráveis, um placar expressivo para uma matéria que toca diretamente no coração das desigualdades históricas brasileiras. O texto agora segue para a sanção do governador Jorginho Mello (PL).

Parte da defesa do projeto se apoia em um argumento recorrente — e profundamente equivocado — de que as cotas estariam retirando vagas de catarinenses para beneficiar estudantes de outros estados. Nesse discurso, a universidade pública é tratada como um condomínio de CEP, e não como um bem coletivo, destinado à formação de pessoas, à produção de conhecimento e à redução de desigualdades. A falácia se sustenta mal em dois níveis.
No plano conceitual, porque o critério legítimo de acesso a uma universidade pública não é o local de nascimento, mas o direito de acesso a políticas públicas em condições minimamente equitativas. No plano factual, porque os próprios dados da UDESC indicam que cerca de quatro em cada cinco estudantes são catarinenses, considerando nascimento ou residência no Estado. A narrativa da “invasão”, portanto, não explica o problema — apenas o inflama.

O projeto não extingue todas as reservas de vagas de forma explícita, mas opera por exclusão seletiva. Permanecem autorizadas apenas as cotas para pessoas com deficiência, aquelas baseadas em critérios exclusivamente econômicos e as destinadas a egressos da escola pública estadual. As ações afirmativas de recorte racial, por sua vez, passam a ser vedadas. O texto ainda prevê multa de R$ 100 mil para editais que descumprirem a vedação e abre caminho para a responsabilização administrativa de gestores públicos, criando um mecanismo de pressão direta sobre a autonomia universitária por meio de sanções. Não se trata apenas de alterar critérios de acesso, mas de disciplinar as instituições por via punitiva, enfraquecendo sua autonomia acadêmica.

Os defensores da proposta alegam que a Lei Federal nº 12.711/2012, a chamada Lei de Cotas, não se aplica obrigatoriamente às universidades estaduais. Formalmente, o argumento procede. Politicamente e juridicamente, é insuficiente. A Lei de Cotas consolidou um paradigma nacional de inclusão, reconhecido como política pública legítima pelo Supremo Tribunal Federal, que em 2012 declarou constitucionais as cotas raciais. Desde então, o sistema foi mantido, avaliado, aperfeiçoado e atualizado em 2023, reforçando seu caráter estrutural como política de Estado. Ao vedar cotas raciais, Santa Catarina não legisla no vazio: afronta um entendimento constitucional amadurecido, que reconhece as ações afirmativas como instrumentos legítimos de reparação histórica e redução de desigualdades estruturais.

Apresentar cotas como privilégio é apagar a história. As políticas de ação afirmativa representam uma correção mínima — quase simbólica — diante de um dos maiores crimes cometidos pela humanidade. O Brasil foi o país que mais tempo manteve a escravidão no Ocidente, por mais de 300 anos, e também o que mais recebeu africanos escravizados no mundo: cerca de 4,8 milhões de pessoas negras foram trazidas à força, arrancadas de seus territórios, culturas e famílias para sustentar a economia colonial e imperial. Após a abolição formal, em 1888, o Estado brasileiro optou pela omissão, sem políticas de integração, reparação ou inclusão dos libertos e de seus descendentes. O resultado dessa escolha histórica permanece visível, até hoje, nos indicadores de renda, escolaridade, acesso ao ensino superior e oportunidades no mercado de trabalho.

Nesse contexto, as cotas raciais não constituem concessão ideológica nem distorção do mérito. São uma tentativa tardia e limitada de reparação, que reconhece que o ponto de partida nunca foi igual. Ignorar essa assimetria estrutural em nome de uma suposta neutralidade é, na prática, naturalizar a exclusão. Não por acaso, a decisão da Alesc cria um ambiente imediato de insegurança jurídica, empurrando o tema para a judicialização. A OAB/SC já anunciou que realizará análise técnico-jurídica sobre a constitucionalidade do projeto, inclusive no que diz respeito à autonomia universitária. A 40ª Promotoria de Justiça da Capital, por meio do Observatório para Enfrentamento ao Racismo, também informou que instaurará procedimento para avaliar a legalidade da medida, com apoio do Centro de Apoio Operacional do Controle de Constitucionalidade do Ministério Público Estadual.

A reação institucional foi rápida e contundente. UFSC, UFFS, UDESC, IFSC e IFC divulgaram nota conjunta classificando a iniciativa como profundamente regressiva e reafirmando que cotas raciais são instrumentos concretos de enfrentamento ao racismo estrutural e de ampliação do acesso ao ensino superior. Em Santa Catarina, a própria Udesc instituiu ações afirmativas em 2011, reservando 20% das vagas para egressos da escola pública e 10% para candidatos negros. Dados históricos indicam que, apenas em 2017, havia 1.845 estudantes cotistas matriculados, sendo 447 por critério racial. São números que representam trajetórias reais, não abstrações ideológicas.

Ao aprovar o fim das cotas raciais, a Assembleia Legislativa fez mais do que votar um projeto de lei. Fez uma escolha: retirar do Estado o papel ativo na correção de desigualdades históricas e substituir políticas de inclusão por uma falsa neutralidade que ignora a realidade brasileira.
Se sancionada, a medida não encerrará o debate. Pelo contrário: reabrirá uma discussão que o país, institucionalmente, já havia amadurecido, agora sob o custo da judicialização, da polarização e do enfraquecimento de políticas públicas que provaram sua eficácia. Há leis que um Estado pode aprovar. E há leis que ele não pode revogar, porque pertencem a um patamar civilizatório mais amplo. As cotas raciais estão nesse segundo grupo.

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